sexta-feira, 30 de março de 2018


Alicatlec 

Foi por quase uma década - e era a de 60 - e desde então guardo aquele som inconfundível, bem vivo na minha lembrança: tlec...tlec... Dois estampidos secos, de mesma intensidade e quase ao mesmo tempo, que se repetiam por inúmeras vezes, na minha infância. 

Já era quase uma rotina acordar antes das 5 da manhã, pelo menos uma vez por mês, pra pegarmos o trem que nos levaria a Estação Portão, um município de São Sebastião do Caí, interior do RS, onde se concentra o maior número de parentes da minha avó materna, com quem morei, desde os 5 anos. Tomávamos um café reforçado e, ainda escuro, de maletinhas nas mãos, lá íamos nós duas, minha avó e eu, para a parada do trem, à beira dos trilhos, na parte baixa da vila onde morávamos, em São Leopoldo/RS. Nem se cogitava a hipótese de pegar dois ônibus pra fazer a tal viagem. O trem passava bem mais perto e era muito mais atraente, acolhedor e interessante. Não havia parada demarcada com sinalização. Era uma parada presumida, criada por um "acordo tácito" entre o maquinista, que já sabia onde parar e os passageiros, que sabiam onde ele pararia. Havendo gente esperando, ele parava; não havendo, passava devagar e seguia direto. 

Mas naquele dia ele pararia. Éramos as únicas a congelar naquele frio cortante, mergulhadas na cerração que nos impedia de enxergar mais que um palmo à frente do nariz. Enquanto esperávamos, perguntava pra minha avó se o homem do alicatlec apareceria de novo. Ela insistia em me corrigir: "Fala direito, menina: a-li-ca-te!" Mas pra mim continuava sendo a-li-ca-tlec! E eis que, de repente, o apito do trem rasga aquela espessa nuvem gelada que nos envolvia e anuncia a sua chegada. Em seguida já se podia ouvir o roçar de ferro contra ferro, indicando que ele diminuía a velocidade. De súbito, surge um farol que clareia tudo e aumenta, à medida em que se aproxima de nós. Logo que pára, o vapor que escapa da descarga nos atropela, antes que possamos colocar os pés nos estribos e subir no vagão. Em segundos, enquanto procuramos um assento duplo pra sentarmos, ele retoma a velocidade e a viagem continua. Pra mim, ela está apenas começando! Era uma verdadeira aventura aquela viagem que não devia durar mais que 50 minutos. 

Sempre que íamos a Portão, a ida e a vinda eram a melhor parte da viagem! O trem de ferro me fascinava. Do apito característico e único - que avisava a proximidade de cada estação ou uma passagem de nível - ao balanço ritmado que nos jogava de um lado para o outro; do barulho nos trilhos às fagulhas de brasa que entravam ou batiam nas janelas de vidro; do cheiro de lenha queimada ao homem do alicatlec. Tudo me fascinava, mas ele, além de tudo, me intrigava. Ainda havia aquela paradinha, em uma das estações, pra reabastecer o trem com água. Achava estranha a mangueira larga e mole, por onde a água passava! Antes mesmo de acabar, o trem saía andando e ela o ficava lambendo por alguns segundos, até cair, pendendo do poste que a prendia. Eu ficava na janela, olhando, até perdê-la de vista na próxima curva... e como havia curvas! 

Finalmente, lá pelas tantas - nem tantas assim - chega a hora que eu tanto esperava! Surge daquela porta que separa um vagão do outro, aquele homem sério, sempre muito sério, dentro de um uniforme cáqui, já desmaiado pelo tempo, com um quepe da mesma cor na cabeça, óculos de aro grosso e preto e um instrumento estranho na mão. Quase sempre eu tinha de cutucar a vó, que a essa altura tentava sonecar : "Vó! Lá vem o alicatlec, lá vem o alicatlec!" Sem balbuciar uma só sílaba, ele chegava em cada um dos passageiros : quem embarcou fora da estação pagava a passagem ali mesmo; quem já tinha o bilhete de passagem, o entregava pra ele. Todos em silêncio. - Outro "acordo tácito". - Raramente ouvia-se algum comentário. Aquela figura silenciosa e de cara amarrada impunha respeito. Em poucos segundos ele acomodava aquele alicate estranho na mão e, num movimento rápido : tlec, tlec..., perfurava o cartão e o devolvia, em seguida, ao seu dono. Meus olhos e minha curiosidade o seguiam por todo o vagão, até que todos os bilhetes estivessem furados. Quando havia muita gente eu chegava a seguí-lo por entre as pessoas, até que ele se perdesse pela porta adentro e sumisse na passagem para o outro vagão. Nunca entendi, naqueles tempos, por que tinha de haver um homem fardado, com quepe de guarda-noturno, óculos severos e cara tão sisuda, dentro do trem, só pra fazer um furo num cartão e, em seguida, devolvê-lo de novo. Queria saber, principalmente, o que e como era aquilo que ele trazia na mão, com o que ele conseguia fazer aquele furinho assim, tão redondinho e sempre do mesmo tamanho. 

"Coisas de criança!" - dizia minha avó!- "Não faz tantas perguntas, menina! É um alicate, e pronto!" "Alicatlec!" - dizia eu - "Ele faz tlec... tlec...!". Consegui descobrir, depois de muitas viagens e na medida em que tomava coragem pra chegar bem perto e grudar o olho na mão dele, que o esquisito alicate tinha, numa de suas mandíbulas, uma ponta cilíndrica, lembrando uma carga de caneta BIC, só que de metal e muito afiada na extremidade. Por isso aquele estampido, quando perfurava o bilhete de passagem, que era um cartãozinho retangular, de papelão, com uns 2 milímetros de espessura: tlec...tlec e lá estava o furo! Vários furos por viagem e lá se ia o alicatlec!

(Crônica de Lena Chagas para o tema “Alicate”, proposto por Mario Prata – publicada no site Anjos de Prata, em 27.10.2000, e na Segunda Antologia Anjos de Prata, em 2001.) 


A Verdade da Mentira 

Ao que se sabe, a humanidade sempre conviveu com a mentira. Platão já teorizava sobre o uso autorizado da mentira na política, referindo-se a duas espécies de mentira: uma moralmente admitida - ou mentira útil -, e outra absolutamente condenável, a mentira autêntica. Nietzsche escreveu que o homem precisa de mentiras. O poeta T. S. Eliot acrescentou que o ser humano não suporta muita realidade. Proust afirmava que a mentira é essencial à humanidade. 

Percebemos, de fato, que a maioria das pessoas é tolerante com as chamadas mentiras convencionais e mentiras sociais - desde que não ofensivas nem mal intencionadas – e até mesmo concorda que, muitas vezes, a mentira se faz necessária ou se justifica. A tolerância a essas mentiras será maior ou menor conforme os valores morais e éticos de cada um, e, quase sempre, visando evitar conflitos. 

Mas o assustador, em nossos dias, é que a mentira assumiu uma dimensão institucional, esfacelando toda a estrutura ética do sistema e aniquilando, de vez, com a já frágil credibilidade. A mentira se justifica sempre que estiverem em jogo os interesses e/ou a sobrevivência dos poderosos. Ninguém é ingênuo ao ponto de acreditar que a verdade e a ética são virtudes inerentes e inabaláveis da política. Ao contrário. Mas monopolizar o discurso e as atitudes em bases fictícias ou negar o óbvio é, para dizer o mínimo, um deboche. 

E esse comportamento na área política e governamental, que se nos escancara, todos os dias, nos meios de comunicação do país banalizou-se de tal forma, que criticar o mentiroso é correr o risco de ser vaiado; dependendo do protagonista pode até resultar em processo por dano moral. 

Com esse aval, o mentiroso sente-se seguro para demonstrar seu espanto arrogante frente à queixa ou indignação de quem o flagrou na mentira. Alguns, tão acostumados à prática mentirosa – ao ponto de acreditar nas próprias mentiras -, chegam a derramar lágrimas sobre os brios feridos, ofendidíssimos pela acusação “injusta” que alegam estar sofrendo. 

Do lado de cá, pagando por esse espetáculo nefasto, seguimos passivos a assistir, estarrecidos e impotentes, lamentando a certeza de que, se não nas brechas da lei, o mentiroso encontrará amparo no colo da impunidade. 

É trágico reconhecer que estamos sendo vencidos pela fraude que se instalou na nação, e que já nos parece demasiado enfadonho procurar a verdade, pois uma vez encontrada nunca nos é satisfatória. Enquanto ficamos embevecidos com o empenho das autoridades em busca da verdade, a mentira continua fazendo seu show. E a julgar pelo cenário, sempre haverá aplausos. 

(Crônica de Lena Chagas,  publicada na nona e última Antologia Os Anjos de Prata, em 20.10.2009.) 



Circunlóquios 

Quem me conhece, sabe: não gosto de meias palavras, rodeios ou panos quentes. Prefiro que me digam as coisas de uma vez só, sem floreios nem entremeios. Tanto as notícias boas, como as ruins. Sem homeopatia ou complacência. 

Mas nem todas as pessoas lembram disso, a tempo. Outras tantas, nem sabem desses detalhes. E entre essas, conheço umas especialistas. Especialistas em dar notícias. 

Algumas precisam contar uma historinha antes, com ou sem nexo, para depois chegar na propriamente dita. Outras, talvez mais sentimentais, tentam poupar o ouvinte de uma má notícia, dando-lhe uma boa, antes. Também há as que gostam de entrar em detalhes, que montam um cenário e até representam o que têm a dizer. E existem aquelas que nos mandam adivinhar a boa nova. Ou, ainda, as que já chegam dizendo que não vamos acreditar no que aconteceu. 

Mas também há quem goste de ser o porta-voz da notícia ruim; tem preferência pela má notícia, aquela que ninguém quer dar. Aparentemente solidário, antecipa-se e se oferece em sacrifício para transmiti-la. No fundo, sente um enorme prazer em ver o sofrimento ou a frustração de quem a recebe. Não acredita? Houve um tempo em que eu também não acreditava. Exceções, doentias exceções. 

Por outro lado, quase no outro extremo, estão aquelas pessoas que vão direto ao ponto. Sem papas na língua. Se doer, assopra. Às vezes são tão diretas que até me assustam. - Quem mandou? Agora, aguenta! 

Exageros à parte, notícias sempre chegam. As boas - não sei por que - demoram um pouco mais; as más chegam voando. Às vezes, já estão nos esperando. 

Naquele 31 de dezembro, foi assim. Quando cheguei no trabalho, alguém já me esperava, na minha sala. Nem imaginava qual poderia ser o assunto já àquela hora, antes das 9 da manhã. O expediente seria reduzido - das 9 ao meio-dia -, para que todos pudessem participar da confraternização oferecida aos funcionários. 

Disse um bom-dia com o sorriso de sempre, perguntou se estava tudo bem e pediu que eu sentasse. Não conseguia disfarçar seu olhar de expectativa, enquanto eu puxava a cadeira e lhe respondia. Esperava por algo mais. Bem mais do que eu, que ignorava o que lhe causara tanta satisfação. 

Percebendo minha inquietação, tratou de prolongar aquele mistério e aguçar minha curiosidade - que já era maior em relação ao seu comportamento do que à novidade que ele insistia em me mostrar com tanto vagar -, saboreando cada palavra que dizia, sem revelar o assunto. 

Depois de muitos rodeios, uma pista. Só então pude perceber do que se tratava. Na medida em que ouvia suas palavras, eu murchava como a chama de uma vela, quando lhe falta o oxigênio. Em poucos segundos, desmoronei. Mesmo assim, impossível não flagrar o deleite que transbordava dos seus olhos, enchia seus gestos e fluía no tom de sua voz. Era prazer. Puro prazer. Desonesto prazer. 

Saiu saciado, não sem antes me desejar um feliz ano novo. Das horas seguintes, não lembro de nada. De alguns anos, esqueci. Afinal, já faz tanto tempo! 

Trauma? Nem tanto! Só sei que sou avessa a circunlóquios!


(Crônica de Lena Chagas, para o tema “Em Cima do Telhado” – atualização  061, de 09.08.2002, do site Anjos de Prata.)