quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Lamento

De tantos passados mortos
vivemos
De tantos amores perdidos
sofremos
De tantos desejos sublimes
esquecemos
De tantos medos vãos
perecemos
De tantos beijos ardentes
desistimos
De tantos prazeres furtivos
fugimos
De tantos amigos fieis
duvidamos
De tantas tristezas alheias
corremos
De tantos desmandos insanos
calamos
De tantas mentiras bizarras
transbordamos
De tantas paixões fugazes
morremos...

(Poema de Lena Chagas, publicado em 2006, na sétima Antologia Os Anjos de Prata.)


domingo, 16 de novembro de 2014

Presença Invisível

Ultimamente, quase todos os nossos amigos têm um endereço 'ponto com alguma coisa'. E é infalível: antes mesmo de prometer um telefonema, os convidamos para que nos visitem. A recíproca é, cada vez mais, verdadeira. 

Visitamos e somos visitados. Sem hora marcada, sem flores ou vinho para o jantar; sem olhares nem marcas de batom; sem cafezinho ou chá das cinco com biscoitos; sem rodada de chopp nem caminhadas no parque; sem encontros no shopping, no cinema, na livraria ou na casa de alguém. É cada um na sua. E é assim que nos "frequentamos". Virtualmente enjaulados. Quase inertes. 

O mundo cibernético está atropelando nossos hábitos e antigos prazeres, sem que nos alertemos para isso. E na vida, fora do ciberespaço, estamos nos transformando, muito mais rápido do que previram os antigos filósofos ou a sociologia moderna, em seres solitários.

Solitários, não sozinhos. Temos vizinhos. "Vizinhos de janela", com quem compartilhamos horas e horas de nossas vidas, um mundo criado só de palavras e ícones, na tela de um computador. Trocamos letras e expressões como antes trocávamos olhares ou sussurros. O toque deixou de ser na pele; é no teclado. Sem arrepios. A mão afaga o mouse em busca de um coração ou de uma carinha triste para traduzir nosso gostar ou nossa dor. As emoções já têm símbolos. E neles as escancaramos e nos entregamos.

Estamos mergulhados num mundo silencioso e monástico, embevecidos sob o efeito de palavras ou partes delas. Enxergamos pessoas invisíveis que nos enlaçam com suas vírgulas e nos ruborizam com suas reticências.  Não apalpamos a sua presença, mas dela sabemos. Vemos (lemos) que ela está ali. Acreditamos no registro simbólico. É dele que fazemos nossa linguagem e é em busca dele que voltamos. 

Poucos não se deixam envolver por essa rede. O ouvir das vozes, o riso, os cheiros e o toque na pele ainda nos traduzem, nos fazem estremecer e nos fazem menos solitários. Linguagem intraduzível.

(Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata, em 24.05.2002.)  


Sem Tempo

É uma desculpa esfarrapada. Posso dizer até que é uma grande mentira. Mas a frase está sempre pronta, na ponta da língua, sempre que preciso dela. É só adequá-la à situação, pois o tema é sempre o mesmo: falta de tempo. 

Estou sempre a procura de tempo para voltar a ler aquele livro, marcado na página onde a história esfriou um pouco e desviou minha atenção. Nunca encontro tempo para pôr em ordem aquelas roupas, já sem uso, empilhadas naquele armário do canto. Nos almoços das quartas-feiras, que os ex-colegas de trabalho organizam, há anos, não fui uma só vez, porque sempre me falta tempo. Ainda não sobrou tempo para cuidar de mim, caminhar regularmente, tomar dois litros de água por dia. Terminar os textos deixados pela metade, renovar a terra dos vasos, mudar as plantas do jardim, visitar velhos amigos e bater papo furado, também são coisas que abandonei por falta de tempo.

Em busca por mais tempo para isso ou para aquilo, já virou obsessão. É quase uma doença. Outro dia, flagrei uma atitude minha que me fez chegar a essa conclusão. Estava na praia, de férias, num ócio absoluto, quando uns amigos ligaram para que eu fosse encontrá-los em um restaurante, onde já esperavam por mim. "Agora, não dá mais tempo!", eu disse. "Como assim? Não dá mais tempo pra quê?", perguntou a voz atônita? Mais surpresa fiquei eu, por não saber a resposta!

Mas não foi sempre assim. Já houve época em que essas queixas não existiam. Acho que não havia tempo para elas. Saía antes das 7h da manhã para ir para à Universidade, não almoçava porque tinha de "bater o ponto" no trabalho ao meio-dia, voltava às aulas às 7h da noite, e só chegava em casa perto da meia-noite. E às vezes, nem dormia. O resto da madrugada eu usava para estudar ou aprontar um trabalho a ser entregue naquela manhã. Bons tempos aqueles!

Hoje, parece que a falta de tempo passou a ser o grande pretexto para que eu me sobrecarregue de tempo. Acumulo tempo como um sovina acumula dinheiro: ele não gasta nunca e não sabe quando nem como vai gastar o dinheiro que guarda. Não dá e nem empresta para ninguém. Não gasta nem com ele mesmo! Quanto mais tem, mais reclama que está sem. Analogia idiota? Pode ser.

Mas verdade seja dita: foi por absoluta falta de tempo que eu não escrevi sobre o tema desta semana: Tempo. 


(Crônica de Lena Chagas, publicada no site dos Anjos de Prata, em 10.01.2002).