domingo, 30 de dezembro de 2012


Sorvete de creme

Existe algo de sublime no sorvete de creme, disse ele a certa altura da conversa. Nunca entendi a fascinação de algumas pessoas pelo sorvete de creme; coisa sem graça! Prefiro o de chocolate ou o de macadâmia. O de creme, só com calda de chocolate. Aí, é outra história.
Já conversávamos há mais de meia hora, e de tudo um pouco se falava. Foi ele quem puxou assunto. Sentei ao seu lado, na única cadeira vazia que ainda havia. O livro Em Algum Lugar do Paraíso, que eu estava lendo, foi o motivo da pergunta:
- Gosta do Fernando Veríssimo, é?   
- Gosto muito. Além de escrever muito bem, ele tem um senso de humor fantástico! 
- Eu não tenho tempo para leitura desse tipo - em livro, assim, quero dizer -,  pois meu tempo está todo tomado pela bolsa (a de valores) e, ultimamente, só leio os jornais do dia - na internet.
As senhas apareciam cada vez mais lentamente no painel eletrônico, mas eu já não tinha pressa. Entre um assunto e outro, mesmos gostos  por filmes e músicas, preferência pelo outono ao verão escaldante que vinha fazendo, viagens aos mesmos lugares e a aversão por acompanhar grupos a lugares turísticos, eram algumas das concordâncias. Parecia que o conhecia há anos. E a senha dele apareceu no painel. A minha teria de esperar mais cinco antes de aparecer.
Ao terminar o que o havia levado ao banco, passou por mim e perguntou se eu aceitaria tomar um café no shopping ali perto.
Vinte minutos depois, o avistei sentado na praça de alimentação. Gentilmente, puxou uma cadeira para eu sentar, e logo perguntou se eu queria mesmo um café ou se preferia acompanhá-lo num sorvete. 
Tantos sabores que fiquei em dúvida. Escolhi dois: passas ao rum e chocolate. 
- Para mim, o de sempre: creme, com bastante calda de chocolate, por favor.
De volta à mesa com as taças de sorvete, o flagrei saboreando a primeira colherada, de olhos fechados, dizendo pausadamente:
- Existe algo de sublime no sorvete de creme!
É a calda de chocolate, exclamei em seguida. Em um movimento simultâneo nos olhamos e rimos muito.
Depois do sorvete, bem... aí, é outra história!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Criança Inventa Cada Uma!

Às vezes, não parecia que havia criança em casa. Filho único acostumado a brincar sozinho, ficava horas e horas montando e desmontando Lego ou transformando algum eletrodoméstico estragado e sem conserto, em outra coisa qualquer. Estava sempre inventando ou refazendo algo.

Já inventou uma forma de abrir a lata de lixo com um simples toque num botão, na parede; um carro-robô que carrega suco sem derramar; pipoqueira, ventilador e leitora de cartões, todos à bateria; cofre ou caixa-forte com segredo (impossível descobrir como se abre aquilo!); banco eletrônico (com sinal sonoro na saída das cédulas (em miniatura)); um sistema interno de tv que liga quando a luz do ambiente é acesa; e tantas outras geringonças que, em seguida, voltavam a ser sucata ou peças e motores do Lego. Assim como as criava, ele as destruía, mas com maior velocidade. Principalmente se surgisse uma nova ideia.

E ele também inventava histórias. Algumas, mirabolantes, em que ele aparecia como espectador, quase sempre encobrindo uma travessura. Só se incluía nela quando o desfecho lhe favorecia. Se aparecesse quem o escutasse com interesse, então, a história crescia. E o entusiasmo dele também.

Sua imaginação vem de longe. Gostava de inventar palavras desde bem pequeno. Se não inventava, ele emendava um pedaço de uma em outra, até encontrar a que traduzisse o que queria dizer. Só não as guardava. Mas ainda me lembro de uma ou duas: subsolático (nome do avião que ele inventou 'para ser movido com energia solar', como dizia); piferroz (prato preferido dele: purê, bife, feijão e arroz). Outras tantas já se perderam, caíram no esquecimento. Nem ele as lembra mais.

Mas uma ainda resiste. Começou em uma frase, depois em duas palavras e hoje é menos que uma 'palavra-valise', embora carregue o mesmo conteúdo.

Quando o ouvi dizendo pela primeira vez, ele devia ter 5 ou 6 anos e eu nem acreditei: "-Ho-je-eu-não-ga-nhei-ca-ri-nhô!" Bem assim, num só fôlego, mas pausadamente, e com ênfase na última sílaba. Explícita, sem sutilezas, e ainda com ritmo! Era assim, puxando na barra do meu vestido, ou encostando a cabecinha no meu joelho, ou sentando no meu colo, que ele pedia o carinho (a mais) de cada dia.

Hoje, adolescendo rápido e falando mais rápido ainda, inventando coisas e modos enquanto muda de voz, sempre me alegra e surpreende, quando pede o carinho que a cada dia tem menos tempo ou paciência de receber: "-nhô!" Pieguices à parte, eu adoro!

(Crônica de Lena Chagas – Publicada no site Anjos de Prata - 2005)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A verdade da mentira

Ao que se sabe a humanidade sempre conviveu com a mentira. Platão já teorizava sobre o uso autorizado da mentira na política, referindo-se a duas espécies de mentira: uma moralmente admitida - ou mentira útil -, e outra absolutamente condenável, a mentira autêntica. Nietzsche escreveu que o homem precisa de mentiras. O poeta T. S. Eliot acrescentou que o ser humano não suporta muita realidade. Proust afirmava que a mentira é essencial à humanidade.

Percebemos, de fato, que a maioria das pessoas é tolerante com as chamadas mentiras convencionais e mentiras sociais - desde que não ofensivas nem mal intencionadas, e até mesmo concorda que, muitas vezes, a mentira se faz necessária ou se justifica. A tolerância a essas mentiras será maior ou menor conforme os valores morais e éticos de cada um, e, quase sempre, visando evitar conflitos.

Mas o assustador, em nossos dias, é que a mentira assumiu uma dimensão institucional, esfacelando toda a estrutura ética do sistema e aniquilando, de vez, com a já frágil credibilidade. A mentira se justifica sempre que estiverem em jogo os interesses e/ou a sobrevivência dos poderosos. Ninguém é ingênuo ao ponto de acreditar que a verdade e a ética são virtudes inerentes e inabaláveis da política. Ao contrário. Mas monopolizar o discurso e as atitudes em bases fictícias ou negar o óbvio é, para dizer o mínimo, um deboche.

E esse comportamento na área política e governamental, que se nos escancara, todos os dias, nos meios de comunicação do país banalizou-se de tal forma, que criticar o mentiroso é correr o risco de ser vaiado; dependendo do protagonista pode até resultar em processo por dano moral.

Com esse aval, o mentiroso sente-se seguro para demonstrar seu espanto arrogante frente à queixa ou indignação de quem o flagrou na mentira. Alguns, tão acostumados à prática mentirosa - ao ponto de acreditar nas próprias mentiras -, chegam a derramar lágrimas sobre os brios feridos, ofendidíssimos pela acusação que alegam estar sofrendo.

Do lado de cá, pagando por esse espetáculo nefasto, seguimos passivos a assistir, estarrecidos e impotentes, lamentando a certeza de que, se não nas brechas da lei, o mentiroso encontrará amparo no colo da impunidade.

É trágico reconhecer que estamos sendo vencidos pela fraude que se instalou na nação, e que já nos parece demasiado enfadonho procurar a verdade, pois uma vez encontrada nunca nos é satisfatória. Enquanto ficamos embevecidos com o empenho das autoridades em busca da verdade, a mentira continua fazendo seu show. E a julgar pelo cenário, sempre haverá aplausos.

(Crônica de Lena Chagas, publicada na 9ª Antologia dos Anjos de Prata – 20 de outubro de 2009)

Circunlóquios

Quem me conhece, sabe: não gosto de meias palavras, rodeios ou panos quentes. Prefiro que me digam as coisas de uma vez só, sem floreios nem entremeios. Tanto as notícias boas, como as ruins. Sem homeopatia ou complacência.

Mas nem todas as pessoas lembram disso a tempo. Outras tantas, nem sabem desses detalhes. E entre essas, conheço umas especialistas. Especialistas em dar notícias.

Algumas precisam contar uma historinha antes, com ou sem nexo, para depois chegar na propriamente dita. Outras, talvez mais sentimentais, tentam poupar o ouvinte de uma má notícia, dando-lhe uma boa, antes. Também há as que gostam de entrar em detalhes, que montam um cenário e até representam o que têm a dizer. E existem aquelas que nos mandam adivinhar a boa nova. Ou, ainda, as que já chegam dizendo que não vamos acreditar no que aconteceu.

Mas também há quem goste de ser o porta-voz da notícia ruim; tem preferência pela má notícia, aquela que ninguém quer dar. Aparentemente solidário, antecipa-se e se oferece em sacrifício para transmiti-la. No fundo, sente um enorme prazer em ver o sofrimento ou a frustração de quem a recebe. Não acredita? Houve um tempo em que eu também não acreditava. Exceções, doentias exceções.

Por outro lado, quase no outro extremo, estão aquelas pessoas que vão direto ao ponto. Sem papas na língua. Se doer, assopra. Às vezes, são tão diretas, que até me assustam. - Quem mandou? Agora, aguenta!

Exageros à parte, notícias sempre chegam. As boas - não sei por que - demoram um pouco mais; as más chegam voando. Às vezes, já estão nos esperando.

Naquele 31 de dezembro, foi assim. Quando cheguei ao trabalho, alguém já me esperava, na minha sala. Nem imaginava qual poderia ser o assunto já àquela hora, antes das 9 da manhã. O expediente seria reduzido – das 9 ao meio-dia -, para que todos pudessem participar da confraternização oferecida aos funcionários, talvez, por isso, a pressa dele - pensei.

Disse um bom-dia com o sorriso de sempre, perguntou se estava tudo bem e pediu que eu sentasse. Não conseguia disfarçar seu olhar de expectativa, enquanto eu puxava a cadeira e lhe respondia. Esperava por algo mais. Bem mais do que eu, que ignorava o que lhe causara tanta satisfação.

Percebendo minha inquietação, tratou de prolongar aquele mistério e aguçar minha curiosidade - que já era maior em relação ao seu comportamento do que à novidade que ele insistia em me mostrar com tanto vagar –, saboreando cada palavra que dizia, sem revelar o assunto.

Depois de muitos rodeios, uma pista. Só então pude perceber do que se tratava. Na medida em que ouvia suas palavras, eu murchava como uma chama de vela, quando lhe falta o oxigênio. Em poucos segundos, desmoronei. Mesmo assim, impossível não flagrar o deleite que transbordava dos seus olhos, enchia seus gestos e fluía no tom de sua voz. Era prazer. Puro prazer. Desonesto prazer.

Saiu da sala saciado, não antes de me desejar um feliz ano novo. Das horas seguintes, não lembro de nada. De alguns anos, esqueci. Afinal, já faz tanto tempo!

Trauma? Nem tanto! Só sei que sou avessa a circunlóquios!

(Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata - 2006).

Do Teu Olhar

Desde muito cedo, percebi que um olhar diz muito mais que as palavras.

Cresci sob olhares que não precisavam de palavras para demonstrar reprovação, desagrado ou para impor limites: sem gritos nem pancadas; apenas um olhar e pronto: já entendi!

Deve ser por isso que, para mim, o olhar decide. E é assim, em várias situações da vida.

Como quando se trata de entender ou me fazer entender pelo outro, num relacionamento amoroso, por exemplo.

Uma paixão começou assim: uma troca de olhares e poucas palavras. Durante horas, parecíamos em estado de contemplação – aquela bobeira que só acontece com quem está apaixonado -, cada um lendo o pensamento do outro na pupila que se dilatava até quase esconder a cor dos olhos, como um eclipse total do sol.

Nenhum dos dois procurava palavras bonitas, excitantes ou lisonjeiras para dizer. Estava tudo ali, escancarado em cada olhar. O entendimento foi consequência; nasceu da sintonia.

Para a percepção do olhar do outro, não precisamos ir tão longe, basta estarmos atentos. Os olhos não usam palavras, transmitem sentimentos. Temos de saber traduzi-los.

Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata - 2004.