domingo, 16 de novembro de 2014

Presença Invisível

Ultimamente, quase todos os nossos amigos têm um endereço 'ponto com alguma coisa'. E é infalível: antes mesmo de prometer um telefonema, os convidamos para que nos visitem. A recíproca é, cada vez mais, verdadeira. 

Visitamos e somos visitados. Sem hora marcada, sem flores ou vinho para o jantar; sem olhares nem marcas de batom; sem cafezinho ou chá das cinco com biscoitos; sem rodada de chopp nem caminhadas no parque; sem encontros no shopping, no cinema, na livraria ou na casa de alguém. É cada um na sua. E é assim que nos "frequentamos". Virtualmente enjaulados. Quase inertes. 

O mundo cibernético está atropelando nossos hábitos e antigos prazeres, sem que nos alertemos para isso. E na vida, fora do ciberespaço, estamos nos transformando, muito mais rápido do que previram os antigos filósofos ou a sociologia moderna, em seres solitários.

Solitários, não sozinhos. Temos vizinhos. "Vizinhos de janela", com quem compartilhamos horas e horas de nossas vidas, um mundo criado só de palavras e ícones, na tela de um computador. Trocamos letras e expressões como antes trocávamos olhares ou sussurros. O toque deixou de ser na pele; é no teclado. Sem arrepios. A mão afaga o mouse em busca de um coração ou de uma carinha triste para traduzir nosso gostar ou nossa dor. As emoções já têm símbolos. E neles as escancaramos e nos entregamos.

Estamos mergulhados num mundo silencioso e monástico, embevecidos sob o efeito de palavras ou partes delas. Enxergamos pessoas invisíveis que nos enlaçam com suas vírgulas e nos ruborizam com suas reticências.  Não apalpamos a sua presença, mas dela sabemos. Vemos (lemos) que ela está ali. Acreditamos no registro simbólico. É dele que fazemos nossa linguagem e é em busca dele que voltamos. 

Poucos não se deixam envolver por essa rede. O ouvir das vozes, o riso, os cheiros e o toque na pele ainda nos traduzem, nos fazem estremecer e nos fazem menos solitários. Linguagem intraduzível.

(Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata, em 24.05.2002.)  


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