sexta-feira, 30 de março de 2018


Alicatlec 

Foi por quase uma década - e era a de 60 - e desde então guardo aquele som inconfundível, bem vivo na minha lembrança: tlec...tlec... Dois estampidos secos, de mesma intensidade e quase ao mesmo tempo, que se repetiam por inúmeras vezes, na minha infância. 

Já era quase uma rotina acordar antes das 5 da manhã, pelo menos uma vez por mês, pra pegarmos o trem que nos levaria a Estação Portão, um município de São Sebastião do Caí, interior do RS, onde se concentra o maior número de parentes da minha avó materna, com quem morei, desde os 5 anos. Tomávamos um café reforçado e, ainda escuro, de maletinhas nas mãos, lá íamos nós duas, minha avó e eu, para a parada do trem, à beira dos trilhos, na parte baixa da vila onde morávamos, em São Leopoldo/RS. Nem se cogitava a hipótese de pegar dois ônibus pra fazer a tal viagem. O trem passava bem mais perto e era muito mais atraente, acolhedor e interessante. Não havia parada demarcada com sinalização. Era uma parada presumida, criada por um "acordo tácito" entre o maquinista, que já sabia onde parar e os passageiros, que sabiam onde ele pararia. Havendo gente esperando, ele parava; não havendo, passava devagar e seguia direto. 

Mas naquele dia ele pararia. Éramos as únicas a congelar naquele frio cortante, mergulhadas na cerração que nos impedia de enxergar mais que um palmo à frente do nariz. Enquanto esperávamos, perguntava pra minha avó se o homem do alicatlec apareceria de novo. Ela insistia em me corrigir: "Fala direito, menina: a-li-ca-te!" Mas pra mim continuava sendo a-li-ca-tlec! E eis que, de repente, o apito do trem rasga aquela espessa nuvem gelada que nos envolvia e anuncia a sua chegada. Em seguida já se podia ouvir o roçar de ferro contra ferro, indicando que ele diminuía a velocidade. De súbito, surge um farol que clareia tudo e aumenta, à medida em que se aproxima de nós. Logo que pára, o vapor que escapa da descarga nos atropela, antes que possamos colocar os pés nos estribos e subir no vagão. Em segundos, enquanto procuramos um assento duplo pra sentarmos, ele retoma a velocidade e a viagem continua. Pra mim, ela está apenas começando! Era uma verdadeira aventura aquela viagem que não devia durar mais que 50 minutos. 

Sempre que íamos a Portão, a ida e a vinda eram a melhor parte da viagem! O trem de ferro me fascinava. Do apito característico e único - que avisava a proximidade de cada estação ou uma passagem de nível - ao balanço ritmado que nos jogava de um lado para o outro; do barulho nos trilhos às fagulhas de brasa que entravam ou batiam nas janelas de vidro; do cheiro de lenha queimada ao homem do alicatlec. Tudo me fascinava, mas ele, além de tudo, me intrigava. Ainda havia aquela paradinha, em uma das estações, pra reabastecer o trem com água. Achava estranha a mangueira larga e mole, por onde a água passava! Antes mesmo de acabar, o trem saía andando e ela o ficava lambendo por alguns segundos, até cair, pendendo do poste que a prendia. Eu ficava na janela, olhando, até perdê-la de vista na próxima curva... e como havia curvas! 

Finalmente, lá pelas tantas - nem tantas assim - chega a hora que eu tanto esperava! Surge daquela porta que separa um vagão do outro, aquele homem sério, sempre muito sério, dentro de um uniforme cáqui, já desmaiado pelo tempo, com um quepe da mesma cor na cabeça, óculos de aro grosso e preto e um instrumento estranho na mão. Quase sempre eu tinha de cutucar a vó, que a essa altura tentava sonecar : "Vó! Lá vem o alicatlec, lá vem o alicatlec!" Sem balbuciar uma só sílaba, ele chegava em cada um dos passageiros : quem embarcou fora da estação pagava a passagem ali mesmo; quem já tinha o bilhete de passagem, o entregava pra ele. Todos em silêncio. - Outro "acordo tácito". - Raramente ouvia-se algum comentário. Aquela figura silenciosa e de cara amarrada impunha respeito. Em poucos segundos ele acomodava aquele alicate estranho na mão e, num movimento rápido : tlec, tlec..., perfurava o cartão e o devolvia, em seguida, ao seu dono. Meus olhos e minha curiosidade o seguiam por todo o vagão, até que todos os bilhetes estivessem furados. Quando havia muita gente eu chegava a seguí-lo por entre as pessoas, até que ele se perdesse pela porta adentro e sumisse na passagem para o outro vagão. Nunca entendi, naqueles tempos, por que tinha de haver um homem fardado, com quepe de guarda-noturno, óculos severos e cara tão sisuda, dentro do trem, só pra fazer um furo num cartão e, em seguida, devolvê-lo de novo. Queria saber, principalmente, o que e como era aquilo que ele trazia na mão, com o que ele conseguia fazer aquele furinho assim, tão redondinho e sempre do mesmo tamanho. 

"Coisas de criança!" - dizia minha avó!- "Não faz tantas perguntas, menina! É um alicate, e pronto!" "Alicatlec!" - dizia eu - "Ele faz tlec... tlec...!". Consegui descobrir, depois de muitas viagens e na medida em que tomava coragem pra chegar bem perto e grudar o olho na mão dele, que o esquisito alicate tinha, numa de suas mandíbulas, uma ponta cilíndrica, lembrando uma carga de caneta BIC, só que de metal e muito afiada na extremidade. Por isso aquele estampido, quando perfurava o bilhete de passagem, que era um cartãozinho retangular, de papelão, com uns 2 milímetros de espessura: tlec...tlec e lá estava o furo! Vários furos por viagem e lá se ia o alicatlec!

(Crônica de Lena Chagas para o tema “Alicate”, proposto por Mario Prata – publicada no site Anjos de Prata, em 27.10.2000, e na Segunda Antologia Anjos de Prata, em 2001.) 


A Verdade da Mentira 

Ao que se sabe, a humanidade sempre conviveu com a mentira. Platão já teorizava sobre o uso autorizado da mentira na política, referindo-se a duas espécies de mentira: uma moralmente admitida - ou mentira útil -, e outra absolutamente condenável, a mentira autêntica. Nietzsche escreveu que o homem precisa de mentiras. O poeta T. S. Eliot acrescentou que o ser humano não suporta muita realidade. Proust afirmava que a mentira é essencial à humanidade. 

Percebemos, de fato, que a maioria das pessoas é tolerante com as chamadas mentiras convencionais e mentiras sociais - desde que não ofensivas nem mal intencionadas – e até mesmo concorda que, muitas vezes, a mentira se faz necessária ou se justifica. A tolerância a essas mentiras será maior ou menor conforme os valores morais e éticos de cada um, e, quase sempre, visando evitar conflitos. 

Mas o assustador, em nossos dias, é que a mentira assumiu uma dimensão institucional, esfacelando toda a estrutura ética do sistema e aniquilando, de vez, com a já frágil credibilidade. A mentira se justifica sempre que estiverem em jogo os interesses e/ou a sobrevivência dos poderosos. Ninguém é ingênuo ao ponto de acreditar que a verdade e a ética são virtudes inerentes e inabaláveis da política. Ao contrário. Mas monopolizar o discurso e as atitudes em bases fictícias ou negar o óbvio é, para dizer o mínimo, um deboche. 

E esse comportamento na área política e governamental, que se nos escancara, todos os dias, nos meios de comunicação do país banalizou-se de tal forma, que criticar o mentiroso é correr o risco de ser vaiado; dependendo do protagonista pode até resultar em processo por dano moral. 

Com esse aval, o mentiroso sente-se seguro para demonstrar seu espanto arrogante frente à queixa ou indignação de quem o flagrou na mentira. Alguns, tão acostumados à prática mentirosa – ao ponto de acreditar nas próprias mentiras -, chegam a derramar lágrimas sobre os brios feridos, ofendidíssimos pela acusação “injusta” que alegam estar sofrendo. 

Do lado de cá, pagando por esse espetáculo nefasto, seguimos passivos a assistir, estarrecidos e impotentes, lamentando a certeza de que, se não nas brechas da lei, o mentiroso encontrará amparo no colo da impunidade. 

É trágico reconhecer que estamos sendo vencidos pela fraude que se instalou na nação, e que já nos parece demasiado enfadonho procurar a verdade, pois uma vez encontrada nunca nos é satisfatória. Enquanto ficamos embevecidos com o empenho das autoridades em busca da verdade, a mentira continua fazendo seu show. E a julgar pelo cenário, sempre haverá aplausos. 

(Crônica de Lena Chagas,  publicada na nona e última Antologia Os Anjos de Prata, em 20.10.2009.) 



Circunlóquios 

Quem me conhece, sabe: não gosto de meias palavras, rodeios ou panos quentes. Prefiro que me digam as coisas de uma vez só, sem floreios nem entremeios. Tanto as notícias boas, como as ruins. Sem homeopatia ou complacência. 

Mas nem todas as pessoas lembram disso, a tempo. Outras tantas, nem sabem desses detalhes. E entre essas, conheço umas especialistas. Especialistas em dar notícias. 

Algumas precisam contar uma historinha antes, com ou sem nexo, para depois chegar na propriamente dita. Outras, talvez mais sentimentais, tentam poupar o ouvinte de uma má notícia, dando-lhe uma boa, antes. Também há as que gostam de entrar em detalhes, que montam um cenário e até representam o que têm a dizer. E existem aquelas que nos mandam adivinhar a boa nova. Ou, ainda, as que já chegam dizendo que não vamos acreditar no que aconteceu. 

Mas também há quem goste de ser o porta-voz da notícia ruim; tem preferência pela má notícia, aquela que ninguém quer dar. Aparentemente solidário, antecipa-se e se oferece em sacrifício para transmiti-la. No fundo, sente um enorme prazer em ver o sofrimento ou a frustração de quem a recebe. Não acredita? Houve um tempo em que eu também não acreditava. Exceções, doentias exceções. 

Por outro lado, quase no outro extremo, estão aquelas pessoas que vão direto ao ponto. Sem papas na língua. Se doer, assopra. Às vezes são tão diretas que até me assustam. - Quem mandou? Agora, aguenta! 

Exageros à parte, notícias sempre chegam. As boas - não sei por que - demoram um pouco mais; as más chegam voando. Às vezes, já estão nos esperando. 

Naquele 31 de dezembro, foi assim. Quando cheguei no trabalho, alguém já me esperava, na minha sala. Nem imaginava qual poderia ser o assunto já àquela hora, antes das 9 da manhã. O expediente seria reduzido - das 9 ao meio-dia -, para que todos pudessem participar da confraternização oferecida aos funcionários. 

Disse um bom-dia com o sorriso de sempre, perguntou se estava tudo bem e pediu que eu sentasse. Não conseguia disfarçar seu olhar de expectativa, enquanto eu puxava a cadeira e lhe respondia. Esperava por algo mais. Bem mais do que eu, que ignorava o que lhe causara tanta satisfação. 

Percebendo minha inquietação, tratou de prolongar aquele mistério e aguçar minha curiosidade - que já era maior em relação ao seu comportamento do que à novidade que ele insistia em me mostrar com tanto vagar -, saboreando cada palavra que dizia, sem revelar o assunto. 

Depois de muitos rodeios, uma pista. Só então pude perceber do que se tratava. Na medida em que ouvia suas palavras, eu murchava como a chama de uma vela, quando lhe falta o oxigênio. Em poucos segundos, desmoronei. Mesmo assim, impossível não flagrar o deleite que transbordava dos seus olhos, enchia seus gestos e fluía no tom de sua voz. Era prazer. Puro prazer. Desonesto prazer. 

Saiu saciado, não sem antes me desejar um feliz ano novo. Das horas seguintes, não lembro de nada. De alguns anos, esqueci. Afinal, já faz tanto tempo! 

Trauma? Nem tanto! Só sei que sou avessa a circunlóquios!


(Crônica de Lena Chagas, para o tema “Em Cima do Telhado” – atualização  061, de 09.08.2002, do site Anjos de Prata.) 



terça-feira, 30 de junho de 2015


Fim da Paixão 

Paixão é encantamento, fantasia, euforia, adrenalina; paixão é fogo!
De natureza fugaz, sem qualquer aviso, pode virar fumaça. E o estrago sempre é grande quando a paixão continua para um, mas chega ao fim para o outro. O desapaixonado, sem traumas, quer mais é seguir em frente, buscar (quando já não tem!), viver outra emoção, mas àquele a quem a paixão não abandonou se junta a desolação. 
É difícil sair de uma paixão, mesmo já se sabendo sozinho nela.
O sofrimento pode durar até mais tempo do que durou a paixão. Dependerá do quanto estivermos fundidos com esse sentimento.
Geralmente, a dor faz com que o abandonado procure justificativas para entender o afastamento do outro, ou para fortalecer o desejo da sua volta, enquanto nutre a esperança da reconciliação.
Esse alimentar-se do que foi perdido é de uma insanidade assustadora!
E o "senso criativo" de cada um, a necessidade de se autoflagelar, o tamanho da solidão que passa a assolar a sua vida, ou a soma desses motivos e de tantos mais, é que serão os ingredientes que definirão o tamanho e a duração dessa loucura.
Sem noção de realidade e de si mesmo, o desprezado (ou preterido) passa os dias mergulhado na solidão e no sofrimento. Nada parece desgastar a crosta funesta que tem sobre si.
Sentir-se sozinho o deixou à deriva, sem chão, e, para sobreviver, tem de contar com o tempo para que essa paixão definhe antes que a vida lhe escape!
Por isso, a urgência em virar a página. Difícil? Muito! Mas esquecer também exige querer. E mudar o foco é um bom começo.
Outra paixão, melhor remédio! Mas enquanto isso não acontece, ocupar-se é um bom paliativo. Sem maiores exemplos... Cada um tem uma medida para suportar o luto.
O certo é que nenhum abandono encontra abrigo se não lhe deixamos espaço. 



(Crônica de Lena Chagas, publicada em 2007, na oitava Antologia Os Anjos de Prata.)


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Lamento

De tantos passados mortos
vivemos
De tantos amores perdidos
sofremos
De tantos desejos sublimes
esquecemos
De tantos medos vãos
perecemos
De tantos beijos ardentes
desistimos
De tantos prazeres furtivos
fugimos
De tantos amigos fieis
duvidamos
De tantas tristezas alheias
corremos
De tantos desmandos insanos
calamos
De tantas mentiras bizarras
transbordamos
De tantas paixões fugazes
morremos...

(Poema de Lena Chagas, publicado em 2006, na sétima Antologia Os Anjos de Prata.)


domingo, 16 de novembro de 2014

Presença Invisível

Ultimamente, quase todos os nossos amigos têm um endereço 'ponto com alguma coisa'. E é infalível: antes mesmo de prometer um telefonema, os convidamos para que nos visitem. A recíproca é, cada vez mais, verdadeira. 

Visitamos e somos visitados. Sem hora marcada, sem flores ou vinho para o jantar; sem olhares nem marcas de batom; sem cafezinho ou chá das cinco com biscoitos; sem rodada de chopp nem caminhadas no parque; sem encontros no shopping, no cinema, na livraria ou na casa de alguém. É cada um na sua. E é assim que nos "frequentamos". Virtualmente enjaulados. Quase inertes. 

O mundo cibernético está atropelando nossos hábitos e antigos prazeres, sem que nos alertemos para isso. E na vida, fora do ciberespaço, estamos nos transformando, muito mais rápido do que previram os antigos filósofos ou a sociologia moderna, em seres solitários.

Solitários, não sozinhos. Temos vizinhos. "Vizinhos de janela", com quem compartilhamos horas e horas de nossas vidas, um mundo criado só de palavras e ícones, na tela de um computador. Trocamos letras e expressões como antes trocávamos olhares ou sussurros. O toque deixou de ser na pele; é no teclado. Sem arrepios. A mão afaga o mouse em busca de um coração ou de uma carinha triste para traduzir nosso gostar ou nossa dor. As emoções já têm símbolos. E neles as escancaramos e nos entregamos.

Estamos mergulhados num mundo silencioso e monástico, embevecidos sob o efeito de palavras ou partes delas. Enxergamos pessoas invisíveis que nos enlaçam com suas vírgulas e nos ruborizam com suas reticências.  Não apalpamos a sua presença, mas dela sabemos. Vemos (lemos) que ela está ali. Acreditamos no registro simbólico. É dele que fazemos nossa linguagem e é em busca dele que voltamos. 

Poucos não se deixam envolver por essa rede. O ouvir das vozes, o riso, os cheiros e o toque na pele ainda nos traduzem, nos fazem estremecer e nos fazem menos solitários. Linguagem intraduzível.

(Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata, em 24.05.2002.)  


Sem Tempo

É uma desculpa esfarrapada. Posso dizer até que é uma grande mentira. Mas a frase está sempre pronta, na ponta da língua, sempre que preciso dela. É só adequá-la à situação, pois o tema é sempre o mesmo: falta de tempo. 

Estou sempre a procura de tempo para voltar a ler aquele livro, marcado na página onde a história esfriou um pouco e desviou minha atenção. Nunca encontro tempo para pôr em ordem aquelas roupas, já sem uso, empilhadas naquele armário do canto. Nos almoços das quartas-feiras, que os ex-colegas de trabalho organizam, há anos, não fui uma só vez, porque sempre me falta tempo. Ainda não sobrou tempo para cuidar de mim, caminhar regularmente, tomar dois litros de água por dia. Terminar os textos deixados pela metade, renovar a terra dos vasos, mudar as plantas do jardim, visitar velhos amigos e bater papo furado, também são coisas que abandonei por falta de tempo.

Em busca por mais tempo para isso ou para aquilo, já virou obsessão. É quase uma doença. Outro dia, flagrei uma atitude minha que me fez chegar a essa conclusão. Estava na praia, de férias, num ócio absoluto, quando uns amigos ligaram para que eu fosse encontrá-los em um restaurante, onde já esperavam por mim. "Agora, não dá mais tempo!", eu disse. "Como assim? Não dá mais tempo pra quê?", perguntou a voz atônita? Mais surpresa fiquei eu, por não saber a resposta!

Mas não foi sempre assim. Já houve época em que essas queixas não existiam. Acho que não havia tempo para elas. Saía antes das 7h da manhã para ir para à Universidade, não almoçava porque tinha de "bater o ponto" no trabalho ao meio-dia, voltava às aulas às 7h da noite, e só chegava em casa perto da meia-noite. E às vezes, nem dormia. O resto da madrugada eu usava para estudar ou aprontar um trabalho a ser entregue naquela manhã. Bons tempos aqueles!

Hoje, parece que a falta de tempo passou a ser o grande pretexto para que eu me sobrecarregue de tempo. Acumulo tempo como um sovina acumula dinheiro: ele não gasta nunca e não sabe quando nem como vai gastar o dinheiro que guarda. Não dá e nem empresta para ninguém. Não gasta nem com ele mesmo! Quanto mais tem, mais reclama que está sem. Analogia idiota? Pode ser.

Mas verdade seja dita: foi por absoluta falta de tempo que eu não escrevi sobre o tema desta semana: Tempo. 


(Crônica de Lena Chagas, publicada no site dos Anjos de Prata, em 10.01.2002).

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O tom da palavra 


Palavra escrita:
falta o tom da palavra dita
      falta o peso
do olhar que fita.

Palavra escrita:
      falta o gesto do aceno
      falta o som
de um grito obsceno.

Palavra escrita:
      falta o suor ofegante
      falta o murmúrio
do beijo amante.

Palavra escrita:
      guarda a alma que nela fala
      guarda o gozo
que dela exala.

Palavra escrita:
      guarda o tema que nela encerra
      guarda o segredo
que aos olhos revela.

Palavra escrita:
guarda emoções em letras frias
guarda o prazer
            que, no ócio, a leitura sacia.

Palavra escrita:
guarda vidas minhas e vidas tuas
guarda mistérios
            que a letra perpetua.

14.11.2000
Webcam na primeira pessoa

Penso se vou
Penso se fico
Penso em não ir
Ou se não fico
Se penso, não vou
Se não penso, fico!
Fixo o olhar
E com o olhar fixo
Calo o pensar
E com o pensar, fico.

14.11.2000


Tricotando


Ponto meia
meio ponto
meia ponta
ponta e meia

Ponto de nó
ponto forte
ponto cardeal
ponto de equilíbrio
ponto ideal
ponto de interrogação
ponto de fuga
ponto de luz
ponto fixo
ponto em branco
ponto fraco
ponto de bala
ponto cego
ponto alto
ponto de exclamação
ponto de honra
ponto simples
ponto neutro
ponto facultativo
ponto infinito
ponto de vista
ponto de partida
ponto-atrás
ponto sem nó
ponto crítico
ponto-falso
ponto de chegada
entrega os pontos
ponto cruz
ponto morto
ponto final

Uma volta
meia-volta
volta e meia
volta ao ponto
ponto meia.

02.11.2000

In blues

(lembrando Badaró e Elyza, de Os Anjos de Badaró, de Mario Prata)

Amantes sedentos
luz desmaiada
vinho rubro
blues candente
balanço sensual
mãos que se buscam
rhythm in blues
corpos  se roçam
dançam carícias
hálitos excitam
trocas ardentes
peles se tocam
sussurros picantes
rhythm in blues
pupilas dilatam
bocas se encontram
salivas doces
beijos cegos
fôlegos trôpegos
doida paixão
rhythm in blues
música entorpece
vinho entontece
coração endoidece
noite desfalece
corpo estremece
que tudo recomece
rhythm in blues.

05.10.2000

Riso aberto 

Risada larga 
riso aberto
a pedido
bem de perto

Sem rodeios
sem mistério
com vontade
nada sério

Com doçura
bem mineiro
mais alegre
por inteiro

Sem censura
nem bravata
riso solto
riso prata.
  
13.09.2000
Definindo os artigos...

O palpite roubou a cena
os personagens viraram gente
os índices explodiram a tabela
o provedor travou de novo
o autor quase enlouqueceu
os anjos piraram no 34
o nosso medo é que acabe
os amores se esconderam
os humores se revezaram
o nosso dia mudou de rumo
o site é um sucesso
o livro on-line vai pro papel
o Badaró nunca morreu
o amor de Elyza não acabou
o meu coração quase explodiu
os blues podem voltar
os dias prateados vão continuar!

31.08.2000

domingo, 30 de dezembro de 2012


Sorvete de creme

Existe algo de sublime no sorvete de creme, disse ele a certa altura da conversa. Nunca entendi a fascinação de algumas pessoas pelo sorvete de creme; coisa sem graça! Prefiro o de chocolate ou o de macadâmia. O de creme, só com calda de chocolate. Aí, é outra história.
Já conversávamos há mais de meia hora, e de tudo um pouco se falava. Foi ele quem puxou assunto. Sentei ao seu lado, na única cadeira vazia que ainda havia. O livro Em Algum Lugar do Paraíso, que eu estava lendo, foi o motivo da pergunta:
- Gosta do Fernando Veríssimo, é?   
- Gosto muito. Além de escrever muito bem, ele tem um senso de humor fantástico! 
- Eu não tenho tempo para leitura desse tipo - em livro, assim, quero dizer -,  pois meu tempo está todo tomado pela bolsa (a de valores) e, ultimamente, só leio os jornais do dia - na internet.
As senhas apareciam cada vez mais lentamente no painel eletrônico, mas eu já não tinha pressa. Entre um assunto e outro, mesmos gostos  por filmes e músicas, preferência pelo outono ao verão escaldante que vinha fazendo, viagens aos mesmos lugares e a aversão por acompanhar grupos a lugares turísticos, eram algumas das concordâncias. Parecia que o conhecia há anos. E a senha dele apareceu no painel. A minha teria de esperar mais cinco antes de aparecer.
Ao terminar o que o havia levado ao banco, passou por mim e perguntou se eu aceitaria tomar um café no shopping ali perto.
Vinte minutos depois, o avistei sentado na praça de alimentação. Gentilmente, puxou uma cadeira para eu sentar, e logo perguntou se eu queria mesmo um café ou se preferia acompanhá-lo num sorvete. 
Tantos sabores que fiquei em dúvida. Escolhi dois: passas ao rum e chocolate. 
- Para mim, o de sempre: creme, com bastante calda de chocolate, por favor.
De volta à mesa com as taças de sorvete, o flagrei saboreando a primeira colherada, de olhos fechados, dizendo pausadamente:
- Existe algo de sublime no sorvete de creme!
É a calda de chocolate, exclamei em seguida. Em um movimento simultâneo nos olhamos e rimos muito.
Depois do sorvete, bem... aí, é outra história!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Criança Inventa Cada Uma!

Às vezes, não parecia que havia criança em casa. Filho único acostumado a brincar sozinho, ficava horas e horas montando e desmontando Lego ou transformando algum eletrodoméstico estragado e sem conserto, em outra coisa qualquer. Estava sempre inventando ou refazendo algo.

Já inventou uma forma de abrir a lata de lixo com um simples toque num botão, na parede; um carro-robô que carrega suco sem derramar; pipoqueira, ventilador e leitora de cartões, todos à bateria; cofre ou caixa-forte com segredo (impossível descobrir como se abre aquilo!); banco eletrônico (com sinal sonoro na saída das cédulas (em miniatura)); um sistema interno de tv que liga quando a luz do ambiente é acesa; e tantas outras geringonças que, em seguida, voltavam a ser sucata ou peças e motores do Lego. Assim como as criava, ele as destruía, mas com maior velocidade. Principalmente se surgisse uma nova ideia.

E ele também inventava histórias. Algumas, mirabolantes, em que ele aparecia como espectador, quase sempre encobrindo uma travessura. Só se incluía nela quando o desfecho lhe favorecia. Se aparecesse quem o escutasse com interesse, então, a história crescia. E o entusiasmo dele também.

Sua imaginação vem de longe. Gostava de inventar palavras desde bem pequeno. Se não inventava, ele emendava um pedaço de uma em outra, até encontrar a que traduzisse o que queria dizer. Só não as guardava. Mas ainda me lembro de uma ou duas: subsolático (nome do avião que ele inventou 'para ser movido com energia solar', como dizia); piferroz (prato preferido dele: purê, bife, feijão e arroz). Outras tantas já se perderam, caíram no esquecimento. Nem ele as lembra mais.

Mas uma ainda resiste. Começou em uma frase, depois em duas palavras e hoje é menos que uma 'palavra-valise', embora carregue o mesmo conteúdo.

Quando o ouvi dizendo pela primeira vez, ele devia ter 5 ou 6 anos e eu nem acreditei: "-Ho-je-eu-não-ga-nhei-ca-ri-nhô!" Bem assim, num só fôlego, mas pausadamente, e com ênfase na última sílaba. Explícita, sem sutilezas, e ainda com ritmo! Era assim, puxando na barra do meu vestido, ou encostando a cabecinha no meu joelho, ou sentando no meu colo, que ele pedia o carinho (a mais) de cada dia.

Hoje, adolescendo rápido e falando mais rápido ainda, inventando coisas e modos enquanto muda de voz, sempre me alegra e surpreende, quando pede o carinho que a cada dia tem menos tempo ou paciência de receber: "-nhô!" Pieguices à parte, eu adoro!

(Crônica de Lena Chagas – Publicada no site Anjos de Prata - 2005)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A verdade da mentira

Ao que se sabe a humanidade sempre conviveu com a mentira. Platão já teorizava sobre o uso autorizado da mentira na política, referindo-se a duas espécies de mentira: uma moralmente admitida - ou mentira útil -, e outra absolutamente condenável, a mentira autêntica. Nietzsche escreveu que o homem precisa de mentiras. O poeta T. S. Eliot acrescentou que o ser humano não suporta muita realidade. Proust afirmava que a mentira é essencial à humanidade.

Percebemos, de fato, que a maioria das pessoas é tolerante com as chamadas mentiras convencionais e mentiras sociais - desde que não ofensivas nem mal intencionadas, e até mesmo concorda que, muitas vezes, a mentira se faz necessária ou se justifica. A tolerância a essas mentiras será maior ou menor conforme os valores morais e éticos de cada um, e, quase sempre, visando evitar conflitos.

Mas o assustador, em nossos dias, é que a mentira assumiu uma dimensão institucional, esfacelando toda a estrutura ética do sistema e aniquilando, de vez, com a já frágil credibilidade. A mentira se justifica sempre que estiverem em jogo os interesses e/ou a sobrevivência dos poderosos. Ninguém é ingênuo ao ponto de acreditar que a verdade e a ética são virtudes inerentes e inabaláveis da política. Ao contrário. Mas monopolizar o discurso e as atitudes em bases fictícias ou negar o óbvio é, para dizer o mínimo, um deboche.

E esse comportamento na área política e governamental, que se nos escancara, todos os dias, nos meios de comunicação do país banalizou-se de tal forma, que criticar o mentiroso é correr o risco de ser vaiado; dependendo do protagonista pode até resultar em processo por dano moral.

Com esse aval, o mentiroso sente-se seguro para demonstrar seu espanto arrogante frente à queixa ou indignação de quem o flagrou na mentira. Alguns, tão acostumados à prática mentirosa - ao ponto de acreditar nas próprias mentiras -, chegam a derramar lágrimas sobre os brios feridos, ofendidíssimos pela acusação que alegam estar sofrendo.

Do lado de cá, pagando por esse espetáculo nefasto, seguimos passivos a assistir, estarrecidos e impotentes, lamentando a certeza de que, se não nas brechas da lei, o mentiroso encontrará amparo no colo da impunidade.

É trágico reconhecer que estamos sendo vencidos pela fraude que se instalou na nação, e que já nos parece demasiado enfadonho procurar a verdade, pois uma vez encontrada nunca nos é satisfatória. Enquanto ficamos embevecidos com o empenho das autoridades em busca da verdade, a mentira continua fazendo seu show. E a julgar pelo cenário, sempre haverá aplausos.

(Crônica de Lena Chagas, publicada na 9ª Antologia dos Anjos de Prata – 20 de outubro de 2009)

Circunlóquios

Quem me conhece, sabe: não gosto de meias palavras, rodeios ou panos quentes. Prefiro que me digam as coisas de uma vez só, sem floreios nem entremeios. Tanto as notícias boas, como as ruins. Sem homeopatia ou complacência.

Mas nem todas as pessoas lembram disso a tempo. Outras tantas, nem sabem desses detalhes. E entre essas, conheço umas especialistas. Especialistas em dar notícias.

Algumas precisam contar uma historinha antes, com ou sem nexo, para depois chegar na propriamente dita. Outras, talvez mais sentimentais, tentam poupar o ouvinte de uma má notícia, dando-lhe uma boa, antes. Também há as que gostam de entrar em detalhes, que montam um cenário e até representam o que têm a dizer. E existem aquelas que nos mandam adivinhar a boa nova. Ou, ainda, as que já chegam dizendo que não vamos acreditar no que aconteceu.

Mas também há quem goste de ser o porta-voz da notícia ruim; tem preferência pela má notícia, aquela que ninguém quer dar. Aparentemente solidário, antecipa-se e se oferece em sacrifício para transmiti-la. No fundo, sente um enorme prazer em ver o sofrimento ou a frustração de quem a recebe. Não acredita? Houve um tempo em que eu também não acreditava. Exceções, doentias exceções.

Por outro lado, quase no outro extremo, estão aquelas pessoas que vão direto ao ponto. Sem papas na língua. Se doer, assopra. Às vezes, são tão diretas, que até me assustam. - Quem mandou? Agora, aguenta!

Exageros à parte, notícias sempre chegam. As boas - não sei por que - demoram um pouco mais; as más chegam voando. Às vezes, já estão nos esperando.

Naquele 31 de dezembro, foi assim. Quando cheguei ao trabalho, alguém já me esperava, na minha sala. Nem imaginava qual poderia ser o assunto já àquela hora, antes das 9 da manhã. O expediente seria reduzido – das 9 ao meio-dia -, para que todos pudessem participar da confraternização oferecida aos funcionários, talvez, por isso, a pressa dele - pensei.

Disse um bom-dia com o sorriso de sempre, perguntou se estava tudo bem e pediu que eu sentasse. Não conseguia disfarçar seu olhar de expectativa, enquanto eu puxava a cadeira e lhe respondia. Esperava por algo mais. Bem mais do que eu, que ignorava o que lhe causara tanta satisfação.

Percebendo minha inquietação, tratou de prolongar aquele mistério e aguçar minha curiosidade - que já era maior em relação ao seu comportamento do que à novidade que ele insistia em me mostrar com tanto vagar –, saboreando cada palavra que dizia, sem revelar o assunto.

Depois de muitos rodeios, uma pista. Só então pude perceber do que se tratava. Na medida em que ouvia suas palavras, eu murchava como uma chama de vela, quando lhe falta o oxigênio. Em poucos segundos, desmoronei. Mesmo assim, impossível não flagrar o deleite que transbordava dos seus olhos, enchia seus gestos e fluía no tom de sua voz. Era prazer. Puro prazer. Desonesto prazer.

Saiu da sala saciado, não antes de me desejar um feliz ano novo. Das horas seguintes, não lembro de nada. De alguns anos, esqueci. Afinal, já faz tanto tempo!

Trauma? Nem tanto! Só sei que sou avessa a circunlóquios!

(Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata - 2006).

Do Teu Olhar

Desde muito cedo, percebi que um olhar diz muito mais que as palavras.

Cresci sob olhares que não precisavam de palavras para demonstrar reprovação, desagrado ou para impor limites: sem gritos nem pancadas; apenas um olhar e pronto: já entendi!

Deve ser por isso que, para mim, o olhar decide. E é assim, em várias situações da vida.

Como quando se trata de entender ou me fazer entender pelo outro, num relacionamento amoroso, por exemplo.

Uma paixão começou assim: uma troca de olhares e poucas palavras. Durante horas, parecíamos em estado de contemplação – aquela bobeira que só acontece com quem está apaixonado -, cada um lendo o pensamento do outro na pupila que se dilatava até quase esconder a cor dos olhos, como um eclipse total do sol.

Nenhum dos dois procurava palavras bonitas, excitantes ou lisonjeiras para dizer. Estava tudo ali, escancarado em cada olhar. O entendimento foi consequência; nasceu da sintonia.

Para a percepção do olhar do outro, não precisamos ir tão longe, basta estarmos atentos. Os olhos não usam palavras, transmitem sentimentos. Temos de saber traduzi-los.

Crônica de Lena Chagas, publicada no site Anjos de Prata - 2004.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Se não me falha a memória...

Sempre preferi o doce ao salgado, mas de uns tempos para cá, comer doces passou a ser um desejo quase incontrolável. Não qualquer doce, mas alguns em especial.

Depois de uns quilos a mais e o índice de açúcar nas alturas, resolvi procurar uma explicação para essa voracidade.

Comecei esbarrando naquelas hipóteses óbvias e já há muito conhecidas como a compulsão, a ansiedade, a depressão, e por aí afora...

Mas por que procurar justificar um prazer como se houvesse um motivo amargo a ser compensado por uma doçura? Por que não se deliciar com o prazer, simplesmente?

Tentei, então, fixar a atenção no que acontecia enquanto saciava algum daqueles desejos. Percebi que em muitas vezes chegava a fechar os olhos para viajar nas lembranças que um determinado sabor me trazia.

A geléia de cassis, os bombons recheados de licor ou as cerejas ao vinho do Porto, por exemplo, são sabores que me trazem nítidos detalhes de momentos muito especiais vividos numa paixão.

O marzipã é outro sabor marcante que me surpreende por me levar ainda mais longe, fazendo-me lembrar do cheiro que recendia pela casa dos meus avós, onde passei minha infância.

São tantas e tão boas as lembranças que encontro em tortas de chocolate com bolachas Maria, em amendoins açucarados, em cremes de baunilha, em bananas fritas com açúcar e canela — só para citar alguns —, que é preciso admitir que muitos dos meus melhores momentos foram compartilhados com doçura.

Doces sabores, doces lembranças? Estaria aí a explicação da gula pela glicose? Se for preciso explicar, Freud explica!

Por enquanto, é um alívio saber que ainda posso desfrutar da memória do paladar recuperando muito do que minha memória já perdeu pelo caminho!

E é a Ciência que confirma: as células do paladar e do olfato são as únicas do sistema nervoso que são substituídas quando velhas ou danificadas.

Nem tudo está perdido!

(Crônica de Lena Chagas, publicada na 7ª Antologia dos Anjos de Prata - 2006).

Alicatlec

Foi por quase uma década - e era a de 60 - e desde então guardo aquele som inconfundível, bem vivo na minha lembrança: tlec...tlec... Dois estampidos secos, de mesma intensidade e quase ao mesmo tempo, que se repetiam por inúmeras vezes, na minha infância.
Já era quase uma rotina acordar antes das 5h da manhã, pelo menos uma vez por mês, para pegarmos o trem que nos levaria a Estação Portão, um município de São Sebastião do Caí, interior do RS, onde se concentra o maior número de parentes da minha avó materna, com quem morei, desde os cinco anos. Tomávamos um café reforçado e, ainda escuro, de maletinhas nas mãos, lá íamos nós duas para a parada do trem, à beira dos trilhos, na parte baixa da vila. Nem se cogitava a hipótese de pegar dois ônibus para fazer a tal viagem. O trem passava bem mais perto e era muito mais atraente, acolhedor e interessante. Não havia parada demarcada com sinalização. Era uma parada presumida, criada por um "acordo tácito" entre o maquinista, que já sabia onde parar e os passageiros, que sabiam onde ele pararia. Havendo gente esperando, ele parava; não havendo, passava devagar e seguia direto.
Mas naquele dia, ele pararia. Éramos as únicas a congelar naquele frio cortante, mergulhadas na cerração que nos impedia de enxergar a mais de um palmo à frente do nariz. Enquanto esperávamos, perguntava para minha avó se o homem do alicatlec apareceria de novo. Ela insistia em me corrigir: "Fala direito, menina: a-li-ca-te!" Mas para mim, continuava sendo a-li-ca-tlec! E eis que, de repente, o apito do trem rasga aquela espessa nuvem gelada que nos envolvia e anuncia a sua chegada. Em seguida, já se podia ouvir o roçar de ferro contra ferro, indicando que ele diminuía a velocidade. De súbito, surge um farol que clareia tudo e aumenta à medida em que se aproxima de nós. Logo que para, o vapor que escapa da descarga nos atropela, antes que possamos colocar os pés nos estribos e subir no vagão. Em segundos, enquanto procuramos um assento duplo para sentarmos, ele retoma a velocidade e a viagem continua. Para mim, ela está apenas começando! Era uma verdadeira aventura aquela viagem que não devia durar mais do que cinquenta minutos.
Sempre que íamos a Portão, a ida e a vinda eram a melhor parte da viagem! O trem de ferro me fascinava. Do apito característico e único - que avisava a proximidade de cada estação ou uma passagem de nível - ao balanço ritmado que nos jogava de um lado para o outro; do barulho nos trilhos (tlec.. tlec... tlec.. tlec...) às fagulhas de brasa que entravam ou batiam nas janelas de vidro; do cheiro de lenha queimada ao homem do alicatlec. Tudo me fascinava, mas ele, além de tudo, me intrigava. Ainda havia aquela paradinha, em uma das estações, para reabastecer o trem com água. Achava estranha a mangueira larga e mole, por onde a água passava! Antes mesmo de acabar, o trem saía andando e ela o ficava lambendo por alguns segundos, até cair, pendendo do poste que a prendia. Eu ficava na janela, olhando, até perdê-la de vista na próxima curva... e como havia curvas!
Finalmente, lá pelas tantas - nem tantas assim - chega a hora que eu tanto esperava! Surge daquela porta que separa um vagão do outro, aquele homem sério, sempre muito sério, dentro de um uniforme cáqui já desmaiado pelo tempo, com um quepe da mesma cor na cabeça, óculos de aro preto e um instrumento estranho na mão. Quase sempre eu tinha de cutucar a vó, que a essa altura tentava sonecar : "Vó! Lá vem o alicatlec, lá vem o alicatlec!" Sem balbuciar uma só sílaba, ele chegava em cada um dos passageiros : quem embarcou fora da estação pagava a passagem ali mesmo; quem já tinha o bilhete de passagem, o entregava para ele. Todos em silêncio. - Outro "acordo tácito". - Raramente ouvia-se algum comentário. Aquela figura silenciosa e de cara amarrada impunha respeito (ou medo?). Em poucos segundos, ele acomodava aquele alicate estranho na mão e, num movimento rápido : tlec, tlec..., perfurava o cartão e o devolvia, em seguida, ao seu dono. Meus olhos e minha curiosidade o seguiam por todo o vagão, até que todos os bilhetes estivessem furados. Quando havia muita gente, eu chegava a segui-lo por entre as pessoas, até que ele se perdesse pela porta adentro e sumisse na passagem para o outro vagão. Nunca entendi, naqueles tempos, por que tinha de haver um homem fardado, com quepe de guarda-noturno, óculos severos e cara tão sisuda, dentro do trem, só para fazer um furo num cartão e, em seguida, devolvê-lo de novo. Queria saber, principalmente, o que e como era aquilo que ele trazia na mão, com o que ele conseguia fazer aquele furinho assim, tão redondinho e sempre do mesmo tamanho.
"Coisas de criança," - dizia minha avó!- "não faz tantas perguntas! É um alicate, e pronto!" "Alicatlec!" - dizia eu - "Ele faz tlec... tlec!". Consegui descobrir, depois de muitas viagens e na medida em que tomava coragem para chegar bem perto e grudar o olho na mão dele, que o esquisito alicate tinha, em uma de suas mandíbulas, uma ponta cilíndrica lembrando uma carga de caneta BIC, só que de metal e muito afiada na extremidade. Por isso aquele estampido quando perfurava o bilhete de passagem, que era um cartãozinho retangular, de papelão, com uns dois milímetros de espessura: tlec...tlec e lá estava o furo! Vários furos por viagem e lá se ia o alicatlec!
(Crônica de Lena Chagas, publicada na 2ª Antologia dos Anjos de Prata - 2001)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

MELHOR IDADE?


Deve ser porque, a partir dos 60, você começa a ouvir:

- MELHOR ela(e) ficar em casa; o sol está muito forte.

- MELHOR ela(e) ficar em casa; pode ventar hoje.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; está chovendo muito.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; está muito frio lá fora.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; a gente volta logo.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; na festa só vai gente jovem.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; a gente volta tarde.
- MELHOR ela(e) ficar em casa com as crianças; a gente fica mais à vontade.
- MELHOR ela(e) ficar em casa com os gatinhos.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; o shopping está muito cheio.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; os assaltos a velhos aumentaram muito.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; o carro já está cheio.
- MELHOR ela(e) ficar em casa; no parque tem muita gente.
- MELHOR ela(e) não ir junto ao restaurante; nesse, não tem sopa.
- MELHOR levarmos a(o) vó(ô) pra casa do tio; a turma vem toda pra cá.
- MELHOR não levarmos a(o) vó(ô) à praia; tem muita areia, muito sol, muita gente...
- MELHOR levar a(o) vó(ô) ao geriatra; anda trocando o nome dos meus amigos... será que é Alzheimer?
- MELHOR levar a(o) vó(ô) ao geriatra; anda meio esquecida(o)... será que é Alzheimer?
- MELHOR você usar uma touca de lã; tem um arzinho frio na rua.
- MELHOR você fechar a janela; pode pegar uma pneumonia.
- MELHOR você não comer churrasco; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer salada de maionese; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer batata frita; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer esta torta de morango; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer esta torta de sorvete; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer esse camarão que você fez; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer pizza; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer ovo frito; olha o colesterol!
- MELHOR você não comer esta torta de chocolate; olha o colesterol e os triglicerídeos!
- MELHOR você não comer pão com geleia; olha a glicose!
- MELHOR você não tomar café com açúcar; a cafeína não te deixa dormir e a glicose alta traz diabetes!
- MELHOR você comer mingau de aveia; é bom pro colesterol.
- MELHOR você comer uma banana amassada; melancia é indigesta.
- MELHOR você tomar uma sopa leve.
- MELHOR você não tomar vinho; “pega” fácil.
- MELHOR você tomar um chá de boldo; é digestivo.
- MELHOR você fazer hidroginástica; no clube, há horários só para idosos.
- MELHOR você fazer artesanato; há grupos só para a ‘melhor idade’.
- MELHOR você fazer dança de salão; os velhinhos se divertem muito!
- MELHOR tirar os tapetes da casa; cair e quebrar um osso nessa idade...
- MELHOR você mandar o seu namorado embora; ele só quer o seu dinheiro.
- MELHOR não sair sozinha(o).
- MELHOR não dirigir; chama um taxi.
- MELHOR você viajar com pessoas da sua idade; há pacotes bem em conta para idosos.
- MELHOR só mexer neste botão vermelho do controle remoto (LIGA/DESLIGA).
- MELHOR levarmos a(o) vó(ô) para um lar geriátrico; será MELHOR para ela(e).

E tem muito mais! Aos poucos, "eu lembro"...

Agora, me diz: “MELHOR IDADE”... "MELHOR" PARA QUEM? "MELHOR" PARA QUÊ? "MELHOR" POR QUÊ?


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sempre te espero chegar quando abro minha janela.
Enquanto não chegas, o mundo passa por meus olhos e parece nada fazer sentido: catástrofes, antes raras, enchem o cotidiano; crimes se multiplicam e se vê, a cada dia, que mais se mata por vingança, ódio e até dizem que por amor se mata mais; economias sólidas e ditaduras inabaláveis desmoronam...
E a tua janela, sem luz, continua fechada.
O tempo - correndo para muitos -, zomba de mim que me iludo em acreditar no seu lento andar.
Meu coração anuncia, num salto: luz na tua janela!
Não posso te ver, mas sei que estás presente. Às vezes, isso até me basta. Mas só às vezes. Poucas vezes. Queria, mesmo, é ver teu rosto, teu sorriso, ouvir tua voz, ou, ao menos, um aceno, um olá.
Tantas lembranças enquanto fixo o olhar na luz acesa... tanta vontade de poder te fazer ter a mesma vontade...
Não sei quanto tempo se foi... já foi? Não vi quanto tempo. Parece pouco, mas deve ter sido muito...
Nenhum movimento na tua janela, só a luz acesa.
Quantas vezes, e tudo igual, e, de novo, nada...
Também enxergas luz na minha janela e também sabes da minha presença. Parece ser o bastante.
Com nossas janelas abertas, parece que só nos permitimos a solidão como companhia.
Mas, inexplicavelmente, deixamos a luz acesa, como nos dizendo: estou aqui.